sábado, 23 de setembro de 2017

MATANAY - "AQUELE QUE ROUBA DA MORTE"

“Como ela se sente?”, ela diz que sente a dor da fome, mas sabe que é melhor sentir fome do que estar morta, ela deu um nome para você: MatanayAquele que rouba da morte”.

                Essa é uma cena do filme Beyond Borders ou “Amor Sem Fronteiras”. Resolvi assistir novamente esse filme hoje.  Em minha opinião, é um filme espetacular. Talvez não porque seja uma obra-prima da sétima arte. Não, provavelmente está bem longe disso. Contudo, é um filme que, apesar de ser muito triste em várias partes, tem o potencial de extrair boas coisas de quem nós somos.

                O filme é centrado na história de amor entre Angelina Jolie e Clive Owens  tendo como pano de fundo a atividade de ajuda humanitária nos lugares mais difíceis da terra. Etiópia em 1984 e a grande fome pela qual esse país passou na época, Camboja em 1989 logo depois que tropas vietnamitas invadiram o país e expulsaram o Khmer Vermelho para as florestas remotas do país (se você quiser conferir o que já escrevi sobre o Cambodia: Os Campos Da MorteO Horror, O Horror e Camboja: Uma Aventura Inesquecível de Moto e Chechênia em 1995 no auge do conflito separatista com tropas russas (estive em zonas próximas dos territórios complicados da Chechênia e Dagestão).

Cena do filme num acampamento da Etiópia. No filme, a palavra Matanay é dita por uma mulher à beira da morte. Tentei procurar na Internet se a palavra realmente significava em Etíope "Aquele que rouba a morte", mas não achei resposta. Mesmo sem confirmação, é uma bela palavra e uma boa história.


                No meio de tanto rancor, ódio, indiferença, a existência de milhares de trabalhadores humanitários que para além de ideologias, opiniões, crenças, arriscam as suas próprias vidas para levar algum alívio para milhões de pessoas desesperadas, é um bálsamo para o que há de mais belo em nossa humanidade.

                Se pedissem para me apontar uma organização  humana incrível, apenas uma, eu não teria dúvidas que escolheria os Médicos Sem Fronteiras. Claro, hoje em dia, ao contrário da minha juventude, eu consigo enxergar quão fantástica são empresas como uma Apple, ou admirar pessoas como Elon Musk. Entretanto, poder, dinheiro, inovação, nunca me tocaram tão profundamente como a generosidade e coragem de pessoas dispostas, apesar das piores condições, a ajudar os outros de forma voluntária.



                Aliás, eu sempre fui fascinado pela Ciência e pela generosidade. São os dois atributos que acho mais maravilhosos da nossa espécie. A capacidade humana de procurar a verdade, seja para onde ela leve, de perscrutar os segredos mais complexos do universo de uma forma sem pré-conceitos ou reverência a autoridades. A capacidade humana de ser generoso e amoroso com desconhecidos, com outros humanos que talvez não sejam da mesma família, clã, tribo ou nação.

                Quando estava na faculdade, alguém me perguntou o que eu gostaria de ser. A pergunta me pegou de surpresa, e a única coisa que me veio à cabeça foi “ser uma boa pessoa”. Eu nunca dei muita bola se seria um juiz, ou um advogado rico, ou seja lá o que for, de alguma maneira eu não dava importância para esse tipo de identificação, que é central para muitas pessoas. Um pouco mais adulto esse tipo de identificação, confesso, ganhou mais força. Entretanto, nos dias atuais não significa, como nos tempos de faculdade, muita coisa.

                Quem algum dia leu  o artigo Minha História Financeira, sabe que perdi muito dinheiro na organização de uma festa quando tinha 22 anos.  Gastei R$ 30.000,00 em meados de 2002. Esse dinheiro corrigido pelo IPCA corresponde a algo em torno de R$ 80.000,00. Esse dinheiro aplicado a 95% do CDI a algo em torno de R$ 180.000,00. Sim, foi uma grana enorme.

                Depois de tudo dar errado, de ter gasto essa grana num evento de uma noite que não deu certo, eu me senti um derrotado. Um paspalho de ter perdido essa grana, um verdadeiro idiota. Foi uma época onde os professores da Federal onde estudava estavam em greve, e eu estava sem aulas há alguns meses.  Eu cheguei até pensar em largar a faculdade.

                No outro dia do evento, não sei por qual motivo, acho que minha mãe estava pensando em trocar de carro, nós dois fomos numa loja de  automóveis. Resolvi acompanhá-la e também não sei o motivo. Lembro como se fosse hoje que eu fiquei parado olhando um carro de luxo que estava em disposição. Minha mãe chegou próxima de mim e disse “não fique triste meu filho, você vai ganhar muito dinheiro e poderá comprar um carro desses se quiser”.

                Eu não estava olhando o carro porque de alguma maneira o desejava, aliás,  aquele carro não fazia qualquer sentido para mim (e atualmente faz menos sentido ainda). Porém, até hoje agradeço  aquelas palavras, pois elas  representam o amor que um ser humano especial como a minha mãe teve por mim naquele momento de fragilidade emocional da minha vida. E quantos outros momentos como esse não existiram?       Para além da educação e as condições materiais que a minha mãe me proporcionou, tenho absoluta certeza que me transformei de uma criança no adulto que sou hoje pelos vários momentos de amor que ela me forneceu.

                O amor de uma mãe para com um filho talvez seja uma das coisas mais preciosas que exista.  Talvez trabalhadores humanitários que se dedicam a salvar vidas em condições precárias tentem de alguma forma replicar o amor materno, o amor desinteressado, para ajudar pessoas que talvez não falem nem o mesmo idioma.

                No meio de discussões políticas, de embates econômicos sobre qual doutrina está correta, ou sobre se uma religião é ruim ou não, o sofrimento humano fica em segundo plano, ou às vezes até mesmo some do radar de qualquer consideração. Por isso, fica aqui a minha homenagem a todos os Matanay que por meio de sacrifícios pessoais e amor roubam da morte e ajudam que milhões de pessoas possam viver.

                Um grande abraço a todos!

                

terça-feira, 19 de setembro de 2017

VIOLÊNCIA NO BRASIL - VAMOS CONTINUAR A USAR O MESMO REMÉDIO?



 Olá, colegas. Se há um tema que provoca comoções, debates acirrados, polarizações intensas é o da violência no Brasil. Aliás, talvez a violência seja a principal preocupação da vasta maioria dos brasileiros. Afinal, eventuais problemas econômicos empalidecem quando alguém vê a si ou a pessoas queridas ameaçadas em sua segurança.



 Há mais de três anos, escrevi um artigo denominado A Incompreensão Sobre os Direitos Humanos. Mesmo sem meu blog ser muito conhecido na época, teve lá as suas polêmicas. Não pretendo resgatá-las aqui. Porém, gostaria refletir um pouco sobre a violência que nos assola e a solução que alguns, ou muitos, pensam ser eficaz.  Acho o tema importante para refletirmos o que queremos enquanto sociedade.



 Se um remédio aplicado a uma pessoa doente não resulta em nenhuma melhora do problema original e provoca inúmeros efeitos colaterais danosos, aposto que quase ninguém recomendaria manter a prescrição do uso do remédio. Porém, se alguém não só dissesse que o remédio deveria ser mantido como a dosagem aumentada, eu imagino que quase todos achariam a ideia uma tolice e potencialmente perigosa.



 Pois bem. Há a ideia espalhada por vários setores da sociedade que a política de segurança pública deve ser feita com violência desmedida. Quanto mais criminosos mortos melhor. O conceito  per si não pode ser considerado verdadeiro ou falso (apesar de poder ser elogiado ou criticado do ponto de vista ético).  Talvez a melhor forma de lidar com um aumento da criminalidade seja assassinando supostos criminosos, talvez não seja.



  Acontece que essa formulação pode ser observada no cotidiano brasileiro. Como? Refletindo se um aumento no número de pessoas mortas pela polícia reflete numa diminuição da violência ou da criminalidade. O que quero dizer é que a ideia de violência como forma de se realizar segurança pública já é o que acontece no nosso país, e portanto podemos analisar se está funcionando ou não.



 Primeiramente, isso por uma questão de lógica, uma polícia que mata mais irá morrer mais. Não existe confronto letal onde apenas um lado morra. Isso pode ser atestado nas estatísticas, já que o número de policiais assassinados é enorme no Brasil, de 8 a 10 vezes maior do que o número nos EUA (um país com mais de 300 milhões de habitantes). Não cito países europeus, Japão, Austrália, etc, pois os EUA são o país rico-desenvolvido mais violento por qualquer métrica que se analise. Logo, não faria muito sentido comparar o Japão com o seus 0.1 assassinato por 100 mil habitantes com o Brasil. Além do mais, os EUA são um país continental como o nosso, e com muitas questões inter-raciais não muito bem resolvidas.



 Logo, um respaldo a uma polícia que exerce mais a força letal é condenar essa mesma força policial a ser mais morta. Portanto, a política do “Bandido Bom é Bandido Morto” tem quase como consequência imediata o aumento significativo do número de policiais mortos. A morte de um agente de segurança, além do trauma da perda de uma vida e do impacto na família, é um incentivo a mais para que os demais agentes de segurança ajam com mais violência, numa espiral de violência.

O número de policiais mortos é gigantesco no Brasil. Não pesquisei, e nem sei se esse dado é fácil de encontrar, mas com quase certeza deve ser (ao menos em números absolutos) o país onde mais policiais são mortos no número.

A correlação (e ouso dizer "causação")  parece clara entre aumento de pessoas mortas pela polícia e número de policiais mortos (dados do Estado do RJ)




  A força policial brasileira matou mais de 3300 pessoas no ano de 2015. Por seu turno, as forças policiais dos EUA mataram um  pouco mais de 1000 pessoas.  Portanto, o Brasil com uma população significativamente menor, tem três vezes mais pessoas mortas pela polícia do que nos EUA. É interessante observar nos EUA que a esmagadora maioria das pessoas mortas são nativos (indígenas) e negros. Já no Brasil, a esmagadora maioria das pessoas mortas é composta por  jovens e negros.



 Aliás, se você é como eu, Branco, idade adulta, com um nível de renda maior, a possibilidade de ser assassinado deve ser muito parecida com a média de um cidadão americano ser assassinado.  Uma parcela significativa dos quase 60 mil assassinatos no Brasil são de pessoas pobres, jovens e negras. Sendo assim, se você não tem nenhuma dessas características, a probabilidade, em média, de ser assassinado no Brasil é bastante reduzida.



  Logo, pergunto, o que efetivamente melhorou com o aumento de pessoas mortas pela polícia, e por via de consequência, de policiais mortos? A nossa sensação de segurança melhorou? Parece-me que não, ao contrário, as pessoas estão a cada dia que passa mais inseguras e com receio da violência.



 Portanto, é compreensível que muitas delas se deixem seduzir por discursos fáceis de segurança pública. E falo fáceis, pois eles são extremamente simples de serem proferidos. Qualquer um pode dizer que a solução é mais violência, mesmo que o uso de mais violência não tenha melhorado em nada a vida do brasileiro.



 Há outros  potenciais efeitos que o aumento da violência como forma de segurança pública pode ocasionar. Falei apenas de um que é o aumento do número de policiais mortos. Porém,  o fato é como na velha frase que sempre escutamos desde criança “violência gera mais violência”, talvez uma sociedade com forças policiais mais violentas gerem criminosos ainda mais violentos.

 No Estado onde habito, organizações criminosas estão cometendo cada vez crimes mais horripilantes, algo que não se tinha notícia há 10 anos. Não nos esqueçamos  das dezenas e dezenas de presos mortos por brigas de facções em presídios do Norte-Nordeste do Brasil no começo do ano.  A morte de presos de forma selvagem dentro de um presídio que deveria ser controlado pelo Estado não significa “a melhora da sociedade, pois há menos bandidos vivendo”, não colegas. Representa o fortalecimento de organizações criminosas poderosas e violentas, e isso, como dito no meu artigo escrito à época, é extremamente perigoso.



  Isso pode ser considerado o que Nicholas Taleb chama de efeitos de segunda ordem. O que seriam esses efeitos? É simplesmente as consequências imprevisíveis de quando se tem uma postura intervencionista em sistemas complexos. Taleb gosta muito da ideia que sistemas complexos são complexos e qualquer interferência atabalhoada pode resultar em efeitos não-previstos e muitas vezes danosos. Ele fala que as guerras promovidas pelos EUA no Oriente Médio, e as diversas consequências negativas (como a atual crise de refugiados) são um exemplo claro da sua ideia.



 O surgimento da organização Estado Islâmico (Ou ISIS) é um efeito de segunda ordem, como tentei destacar neste artigo também escrito há mais de três anos :A Infâmia, A Mentira, O Massacre e a Criação de um Monstro. O surgimento do PCC, conforme palavras do Drauzio Varella (alguém que conviveu e ainda convive no sistema prisional), está intimamente ligado com a ação desastrosa do Carandiru. Como eu era adolescente à época, não me lembro das reações, mas com certeza muitas pessoas devem ter pensando “menos bandidos vivendo, isso é bom”, mal sabiam elas que as sementes para o surgimento de uma imensa e perigosa organização criminosa tinham sido plantadas.



  Há uma razão para o uso da força e da violência serem recursos últimos, principalmente por agentes que detém o monopólio legal do uso da violência (fundamento maior do Estado de Direito moderno).

 Uma palestra interessante de um comandante do exército holandês. Nela ele fala dos motivos de ter escolhido uma arma para fazer o mundo melhor. Ele fala sobre a maior conquista humana, na visão dele, que é o Estado de Direito com o monopólio do uso da violência organizada, e é para defender esse Estado de Direito ou graves violações de direitos humanos em lugares longínquos (ao menos do ponto de vista de um cidadão médio holandês) que ele constrói o seu argumento de por qual motivo a arma pode ser um instrumento de paz (em variadas ocasiões pode ser mesmo).


 É evidente que os policiais devem ser autorizados a usar força letal para proteger a vida de terceiros, bem como em legítima defesa. É evidente também que no estado atual de coisas do Brasil, a força policial precisa ser dura e passar autoridade. Parece-me evidente também que nossa força policial sofre, ao menos em muitos estados, com materiais de baixa qualidade, pouca infraestrutura e níveis elevados de stress. Entretanto, nada disso parece justificar que nós, enquanto sociedade, encorajemos uma postura cada vez mais letal de nossos policiais.



 As causas da violência no Brasil provavelmente são múltiplas. Passam pela ineficiência do Judiciário, pela falta de estrutura e interligação dos diversos órgãos de segurança, pelo abandono que algumas comunidades se encontram, pela falta de empatia (sim, a falta de empatia pelos outros com certeza torna a violência mais fácil de ser manifestada), pelas nossas desigualdades históricas, pela impunidade, pela corrupção, etc.



 As causas são variadas, logo para enfrentarmos o fenômeno complexo da violência, parece-me muito mais inteligente e eficiente que possamos ter várias frentes de combate. A insistência no uso cada vez maior de violência pelos órgãos repressores não me parece ser uma saída inteligente, e com o passar dos anos parece claro que esse tipo de ideia fracassou redondamente no Brasil.



  Dizem que a definição de loucura é “fazer a mesma coisa e esperar um resultado diferente”. O que dizer então da ideia de “fazer ainda mais do mesmo e esperar um resultado significativamente diferente”?



 Um abraço a todos

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O MERCADO ACIONÁRIO NÃO É TÃO IMPREVISÍVEL ASSIM?

 Olá, colegas. O mercado acionário realmente é imprevisível? É verdade que não passa de uma “caminhada  aleatória” (expressão retirada do clássico livro a “Random Walk Down Wall Street”)? Não é possível prever os retornos do mercado acionário para o futuro?

  Bom, eu costumava acreditar que sim o mercado acionário é imprevisível, sim é um caminho aleatório, e que não era possível qualquer tipo de previsão. Entretanto, venho mudando um pouco essa ideia, e espero que este artigo torne claro o motivo.


OS COMPONENTES DE RETORNO


 O assunto já foi tratado em dois artigos neste blog (Detalhando os Elementos do Retorno Financeiro de um Ativo e Fundamento - Explicando o Retorno Financeiro de um Ativo, logo remeto a leitura dos mesmos.  Não há outra fonte de retorno. O retorno de um ativo só pode vir do seu dividendo, do crescimento do fluxo de caixa desse dividendo e da mudança ou não da precificação desse ativo

 Esse raciocínio serve para qualquer ativo, e qualquer mercado. Como irei usar ilustrações do mercado americano, achei por bem enfatizar esse aspecto mais uma vez no blog, para evitar comentários padrões de "ah, isso não se aplica ao mercado brasileiro". O que pode mudar são os inputs, que podem variar de país para país, mas a fonte dos retornos, o raciocínio lógico por trás é rigorosamente o mesmo. Uso os dados do mercado americano, pois é ele que possui as fontes de dados mais acessíveis e longas, logo ideal para fixar os conceitos.

  Importante ressaltar que as ilustrações dizem respeito a quase a totalidade do mercado (representado Pelo S&P500 – índice das 500 maiores empresas listadas em bolsa americana), e não apenas a uma empresa em específico. O mesmo raciocínio pode ser feito em relação a uma empresa, mas a toda evidência a volatilidade seja dos lucros, seja do dividendo, seja da mudança de precificação é muito maior numa empresa, mesmo que ela seja a Apple ou Coca-Cola, do que no mercado como um todo.


Esses são os componentes de retorno de qualquer ativo com fluxo de caixa



 O SHILLER CAPE


 O índice SHILLER CAPE já foi comentado algumas vezes aqui na blogosfera. Ele é uma métrica desenvolvida pelo professor Shiller, que ficou muito conhecido pelo seu livro Irrational Exuberance (e que é um baita livro). A expressão "exuberância irracional"  foi apropriada pelo então presidente do FED (Banco Central) americano Greenspan num famoso discurso onde ele expressa a preocupação de uma exuberância acima de qualquer racionalidade no mercado americano nos anos que antecederam o crash da bolha dot.com. No que consiste? Sabemos que a métrica Preço/Lucro pode ser muito volátil de um ano para o outro.  Vejamos o gráfico abaixo:

(fonte http://www.multpl.com)


  Dois momentos chamam atenção: 2001-2002 quando a relação P/L (P/E = Price/Earnings)  chegou a passar de 40, e em 2008 quando ela subiu ainda mais. Os anos de 2001-2002 foram o topo da famosa bolha dot.com, foi o momento da história onde a valuation das ações americanas foi a mais esticada de todos os tempos.

 Porém, como explicar o índice P/L tão alto em pleno crash de 2008? Simples. Mesmo as ações despencado de valor, o lucro das empresas que compõe o índice despencou ainda mais, elevando o P/L a níveis altíssimos. Uma pessoa desavisada poderia pensar que o mercado acionário americano estaria "caro", quando na verdade ele estava razoavelmente "barato"

 E se ao invés de se olhar apenas os lucros corporativos de um ano, se pegasse a média dos últimos 10 anos de lucros corporativos ajustasse tudo pela inflação, isso não faria com que mudanças abruptas como a de 2008 fossem suavizadas? Sim, e essa é a ideia do CAPE-SHILLER. Por qual motivo 10 anos? Porque uma década é um período bem razoável de tempo para todo um ciclo econômico se realizar. Por que ajustar pela inflação? Porque comparar o lucro corporativo no ano de 2005 com o lucro corporativo do ano de 2015 , por exemplo, só faz sentido quando incluímos a inflação, pois caso contrário o lucro nominal do ano de 2015 vai parecer muito maior do que ele realmente é.

 Vejam agora o mesmo gráfico de P/E mais “suavizado” pela média de lucro dos 10 anos anteriores:


 (fonte http://www.multpl.com)

  Observem que a bolha dot.com realmente foi uma bolha forte por qualquer métrica que se analise. Agora, o ano de 2008 apresenta um CAPE de 15, que para padrões americanos é relativamente barato. O ano de 2008 era um ano de subprecificação do mercado acionário.


EARNINGS YIELD DO SHILLER CAPE (EY10)


  Algo extremamente simples, mas com conotações extraordinárias, acontece quando mudamos brevemente o mind set com o qual analisamos alguns ativos.  Pegue o P/L de qualquer ativo e inverta a fração para L/P. Bem-vindo ao earnings yield (EY)

 Quando se analisa Renda Fixa, ou  Fundos Imobiliários no Brasil, se pensa em EY já que comumente se fala que o TD NTN-B35 está pagando 5%aa, ou uma LCA  Pré-Fixada paga 10%aa, por exemplo. Por seu turno, quando se fala de mercado acionário se usa a métrica P/L: a AMBEV está com um P/L de 25, por exemplo. Não sei o motivo de tal diferenciação, mas usualmente se fala de EY para um instrumento de dívida, e não o seu P/L. Porém, coisas muito interessantes acontecem quando analisamos uma renda fixa pela métrica P/L, ou ações pela métrica EY.

 Quando se inverte o CAPE-SHILLER, obtém-se o Earnings Yield Shiller (alguns chamam apenas de EY10) . A média do CAPE SHILLER do mercado americano desde mais ou menos 1890 é de 16.78.

Mean:
16.78
Median:
16.12
Min:
4.78
(Dec 1920)
Max:
44.19
(Dec 1999)
(Média, Mediana, mínimo Cape que foi em 1920 e Máximo Cape em 1999)

  O retorno real, já descontada a inflação, aproximadamente do índice acionário americano foi de 6.5%aa, conforme se pode observar   nessa calculadora

 Colegas, o CAPE-SHILLER médio de 16.78 resulta num EY10 de aproximadamente 6% aa.  Notaram alguma semelhança com o retorno real histórico do índice? Pois é, essa foi uma das maiores “sacadas” que tive esse ano sobre mercados financeiros.  O EY10 é um fator preditivo do retorno real das ações. Eu já tinha lido estudos nesse sentido, mas nunca tinha ficado tão claro assim que eu simplesmente inverti o CAPE-SHILLER para EY10.

  Logo, se conclui sem sombra de dúvidas que a valuation do mercado está intimamente relacionada com o retorno que esse mesmo mercado irá fornecer no futuro. O Link é tão forte, que há estudos de um planejador de aposentadoria chamado Michael Kitces ligando o CAPE na hora que uma pessoa passa de um portfólio de acumulação para um de desinvestimento (seja na aposentadoria ou numa Independência Financeira) e a Taxa Segura de Retirada (aquele percentual que se tira de um patrimônio para manter um determinado padrão de vida durante um certo período de tempo).

  Um CAPE menor, resultando num EY10 maior, leva a taxas muito maiores de retirada. Por seu turno um CAPE maior (como atualmente no mercado americano), resultando num EY10 menor,  leva a taxas menores. Num estudo em particular, Kitces achou que a sobrevivência de um portfólio de retirada de 30-40 anos tem uma correlação gigantesca de quase 0.8 (uma correlação de 0.4 já é considera às vezes significativa, uma de 0,8 é extremamente significativa) com o que acontece na primeira década em relação aos retornos do portfólio. A primeira década de retorno de um portfólio, por seu turno, tem uma correlação gigantesca com o CAPE-Shiller. Sendo assim, a TSR está intimamente ligada com o CAPE. 


A relação é evidente. A correlação é negativa entre CAPE e uma taxa segura de retirada num período de 30 anos.  Em 1921 (, quando o CAPE atingiu incríveis 5, uma pessoa poderia retirar 10% aa do seu patrimônio (o que para padrões americanos é absurdamente alto) durante 30 anos sem risco de extinguir o seu patrimônio. Por seu turno, quando o CAPE aumenta a taxa segura de retirada diminui consideravelmente


  Há até mesmo uma fórmula, que para mim é uma das maneiras mais inteligentes de se pensar a TSR (na equação representada pela letra W de Withdrawal) :


 

   Por mais interessante que seja o tópico, não irei me estender mais sobre esse assunto no presente artigo.


A MÉDIA NEM SEMPRE É A MANEIRA MAIS CORRETA DE SE OLHAR UMA SITUAÇÃO


  Nicholas Taleb no seu livro "Antifrágil" dá o exemplo de como médias podem ser enganosas e prejudiciais em alguns casos, se olhadas de maneira ingênua.  Ao falar de uma senhora que é dado o conselho de que a temperatura média do dia será de 20 graus Celsius e que portanto a mesma não precisaria se preocupar.  Diz o famoso escritor então que esse conselho não vale absolutamente nada, e pode até mesmo ser perigoso,  se a temperatura variar de 50 graus a -10 graus chegando numa agradável média de 20 graus. Logo, médias podem ser enganosas, se olhadas de forma incorreta.


  A mesma ideia  ingênua se pode ter em relação ao retorno real médio do mercado americano (ou de qualquer mercado, FII e mercado acionário brasileiro inclusos). O retorno real médio do mercado acontece quando se está na média da precificação do mesmo, conforme explanado na fantástica similaridade da média do EY10 desde 1890 e do retorno real médio do mercado americano. 

 Alguém que compre o mercado americano a um CAPE abaixo da média histórica, provavelmente terá retornos maiores do que a média, e alguém que compre acima provavelmente terá retornos menores do que a média. Logo, não é simplesmente comprar um ETF que tenta seguir o índice S&P500 e achar que como a média de retorno de mais de 80 anos que foi de 6.5% real aa, essa será a média de retorno provável no longo prazo do investimento, sem olhar para a precificação do mercado no momento da compra.

  Na verdade, os retornos financeiros de 10 anos  consecutivos do mercado americano dificilmente estão na média de retorno histórico, na maioria das vezes eles estão abaixo ou acima da média, e tudo isso por causa de precificações diversas. Tal fato pode ser facilmente observado nessa tabela:


Apenas 20% dos retornos de 10 anos consecutivos (1900-1909, 1901-1910, etc) ficaram na faixa de 8 a 12%, próximo da média de 10% de retorno nominal do índice americano



DE NOVO OS COMPONENTES DE RETORNO


  Os componentes são três: o yield, o crescimento dos lucros e a mudança na precificação do P/L.  O crescimento dos lucros está a grosso modo associado ao crescimento real da economia (há muitos detalhes em relação a isso, e precisaria de apenas um artigo para tratar dessa questão), logo não se pode esperar muito mais do que a média de crescimento da economia em relação ao crescimento dos lucros corporativos do mercado como um todo:

A linha azul é o crescimento nominal da economia Americana. A Linha verde é o crescimento do EPS (Earnings Per Share - Lucro Por ação) das empresas que na época compunham o índice acionário americano. Veja que o crescimento da economia quase não possui qualquer volatilidade, ao contrário do crescimento dos lucros corporativos, mas a tendência é que os dois andem juntos em períodos maiores de tempo (observem como o lucro corporativo despencou em 2008, o que ocasionou a disparada do índice P-L)


 O yield está fortemente relacionado com o índice P/L de compra de um ativo. Logo, se conclui que o maior drive seja para decréscimos ou acréscimos da remuneração de um ativo é a mudança de sua precificação em relação ao P/L, ou CAPE-SHILLER se quisermos ser muito mais precisos e suavizar o ciclo econômico.

A relação entre P-L e o dividend yield é clara

  Sobre essa perspectiva, o mercado acionário como um todo não é tão imprevisível. É claro que uma guerra pode eclodir e o mercado acionário virar pó, como aconteceu na Alemanha Nazista. Ou uma revolução pode acontecer e acabar com o mercado acionário, como aconteceu na Rússia Socialista e na China Maoísta. Porém, tirando esses efeitos extremos, e eventuais bolhas insustentáveis, a precificação atual do mercado é um bom indicativo de como ele irá se comportar na próxima década. A literatura nesse tópico é vasta, mas tentei com esse artigo deixar mais claros os motivos.

 Portanto, a próxima vez que alguém falar que o mercado americano está em fase de bolha, pergunte por qual motivo? Se alguém disser que o mercado acionário brasileiro ainda está barato, pergunte qual dos componentes irá levar ao aumento de precificação: o crescimento da economia com consequente aumento dos lucros corporativos, ou o  aumento no índice P/L? Esse é um excelente exercício para melhorar nossa capacidade de olhar para ativos por nós mesmos, e não depender da análise de analistas que muitas vezes ignoram até o básico da precificação e retorno de ativos financeiros


  Um grande abraço!