terça-feira, 28 de outubro de 2014

INVESTIMENTOS - A IMPORTÂNCIA DE SE TER UMA ESTRATÉGIA

                Olá, colegas! Não vou falar diretamente de eleições. Já há muita coisa na mídia e internet a respeito. Nesse artigo vou falar sobre estratégia e como é importante possuir uma quando falamos de finanças.

                Afinal, o que é estratégia quando se fala em investimentos? Quando eu jogava xadrez era muito normal pensar em termo de estratégia. O jogo de xadrez é extremamente estratégico. A estratégia do ponto de vista financeiro pode ser vista como a forma em que uma pessoa pretende atingir os seus objetivos financeiros. A primeira lição é que não existe estratégia se não existir objetivos. Estes objetivos podem ser de curto, médio ou longo prazo. Como assim, Soul? No xadrez é exatamente assim. Se um jogador quer fortalecer sua posição no centro do tabuleiro (um objetivo de mais curto prazo), pode-se elaborar uma estratégia para atingir tal objetivo. O objetivo final do xadrez sempre será ganhar o jogo com o competidor abandonando (eu nunca dei um xeque-mate em competições oficiais, geralmente quando a partida está perdida, o jogador inferiorizado abandona a partida). Assim, um objetivo de curto prazo (conquistar o centro do tabuleiro) pode estar diretamente relacionado com o objetivo de longo prazo (ganhar o jogo).

Espero que não seja isso que venha na cabela do leitor quando falo de estratégia financeira e associo a xadrez:)

                Sendo assim, a primeira coisa a se pensar em finanças pessoais é quais são os seus objetivos financeiros.  O objetivo financeiro maior de longo prazo para alguém pode ser conquistar a independência financeira. Para outra pessoa pode ser deixar uma boa herança para os filhos. Para outra pessoa pode ser comprar uma casa em Miami.  Somente a pessoa pode definir quais são os seus objetivos. Somente nos conhecendo e fazendo uma auto-reflexão pode-se chegar a objetivos que sejam coerentes com quem nós somos. Sendo assim, o primeiro passo para se pensar em finanças pessoais, por mais estranho que se pareça, não é saber o que é bolsa de valores, mas sim refletir sinceramente sobre quem somos e o que realmente queremos.

                Portanto, os objetivos podem variar de pessoa para pessoa. Ter um objetivo maior de ser independente financeiramente é muito diferente do objetivo de deixar um bom patrimônio para os herdeiros. Nenhum é melhor ou pior do que o outro, eles são apenas diferentes. “Ok, Soul, entendido, mas qual é a relação com estratégia”, alguém pode estar pensando. Simples. Objetivos finais diferentes vão levar quase sempre a estratégias financeiras diferentes. Portanto, em finanças podemos ter alguns conceitos gerais, algumas práticas mais indicadas, mas é muito difícil dizer que uma estratégia é melhor ou pior do que outra sem sabermos quais são os objetivos perseguidos.

                Assim, como saber se uma estratégia com 50% do patrimônio alocado em Fundos de Investimento Imobiliário é pior ou melhor do que outra estratégia onde a alocação é de apenas 20%? Não dá para saber, de antemão, sem primeiramente se indagar quais são os objetivos. Portanto, colegas, antes de começar a investir, defina com clareza quais são os seus objetivos. Se alguém puder ainda ser mais preciso em dividir os objetivos em curto, médio e longo prazo melhor ainda. Geralmente, muitos autores chamam esse ato de reflexão sobre os objetivos um dos momentos mais importantes, sendo que muitos deles dizem que é muito saudável fazer uma “Declaração Inicial de Investimento”, onde a pessoa diz claramente quais são os seus objetivos financeiros e como planeja alcançá-los.

                Alcançar os objetivos financeiros nada mais é do que a estratégia financeira. Aqui sim é importante saber o que é bolsa de valores, o que é duration no mercado de renda fixa, o que é análise fundamentalista, quais são os parâmetros da análise gráfica, opção, derivativos, yields, imóveis, etc, etc. O mundo financeiro é vasto e às vezes complexo. Se um investidor pudesse saber com detalhes toda a complexidade do mundo de investimento, é inegável que o mesmo poderia estabelecer talvez estratégias que levassem de maneira mais fácil a atingir os objetivos financeiros. Porém, não é necessário ser um expert em finanças e tampouco conhecer todos os instrumentos financeiros para se criar uma estratégia que possa atingir os objetivos financeiros almejados.

                Não vou falar como seria uma estratégia financeira, pois isso daria um livro e eu também não seria capaz de tamanha tarefa hercúlea. Porém, vou falar sobre as três etapas da estratégia (e isso pode ser aplicado não só em finanças, mas em várias outras áreas na nossa vida).

- A ELABORAÇÃO DA ESTRATÉGIA


                O primeiro passo, obviamente, é a elaboração da estratégia. Se quero ser independente financeiramente aos 45 anos, o que eu vou fazer objetivamente para alcançar esse objetivo? Irei poupar 30% da minha renda e aportar apenas no mercado acionário e de fundos imobiliários? Ou será que é melhor poupar 40% da renda e dividir o aporte entre renda fixa e o mercado de renda variável? Faz sentido ter exposição internacional? Vou fazer balanceamento do meu portfólio, se sim com qual freqüência, semestral ou anual? Vou me manter fiel aos percentuais estabelecidos, ou tentarei fazer uma alocação de ativos mais agressiva, tentando fazer timing de acordo com filtros fundamentalistas ou de acordo com filtros de análise técnica? Qual é o prazo mínimo para repensar a estratégia? Dois ou cinco anos?

                Assim, a elaboração da estratégia é vital e fundamental para que possamos atingir nossos objetivos financeiros. Ela não precisa ser estanque, ela não precisa ser complexa, mas ela deve ser clara, compreensível e principalmente factível. Assim, não adianta estabelecer metas que sejam praticamente inatingíveis, sob pena do planejamento da estratégia virar um exercício sem qualquer correspondência com a realidade.


IMPLANTAÇÃO DA ESTRATÉGIA

                Pensada a estratégia, é hora de colocar em prática. Uma vez um pai de um amigo meu falou para ele o seguinte: “Ok, filho, você faz vários planos, analisa bastante, muito bacana, mas quando vai começar a colocar em prática?”.  Eu imagino que um empreendedor sinta bastante esse problema da transição entre o planejamento e a colocação em prática de uma determinada ideia. Aliás, tenho certeza que deve ter dezenas de livros que abordem esse problema.

                No mundo das finanças pessoas, colocar em prática é quando você vai assumir, caso não tenha optado por contratar um profissional para fazer por você, a responsabilidade pelos seus atos. É quando você vai apertar o botão de compra e venda dos ativos. A minha transição da elaboração da estratégia para a implementação não foi boa. Muito em parte talvez porque eu não tinha os meus objetivos financeiros tão claros, e nem uma estratégia muito clara pronta. Sendo assim, eu cometi erros. Ainda bem que não foram graves, pois eu sou muito conservador, eu tinha estudado razoavelmente bem antes de comprar ativos e não me expus de maneira demasiada em renda variável. Porém, foram erros, e eu sempre sou lembrado deles quando vejo alguns milhares de reais negativos em alguns ativos que possuo, não por causa de estarem negativos, mas sim porque hoje em dia eu não faria as mesmas escolhas de alguns meses atrás, por exemplo, (não, eu não sou experiente no mercado de renda variável, sempre estou aprendendo e cada vez mais vejo que eu sei muito pouco mesmo sobre finanças).

                É um teste de fogo que todos que querem investir devem passar. Depois de implementada a estratégia, e todo esse meu texto foi para chegar nesse ponto, é hora talvez da fase mais difícil de ser seguida da estratégia: a sua manutenção.


- MANUTENÇÃO DA ESTRATÉGIA


                Colegas, quando falo que cada vez fico mais humilde com os meus limites de entendimento do mercado, não estou sendo falso. É verdade. Cada vez mais eu percebo como é difícil entender o que pode acontecer no próximo ano, por exemplo. Também percebo como as análises de analistas famosos são extremamente rasas. Por exemplo, com a vitória de Dilma nas eleições, foi dito que os próximos dias seriam de desespero no mercado e no câmbio. Eu não via muito sentido para isso, mas vai saber o que poderia acontecer. Li inúmeras mensagens de pessoas em alguns espaços dizendo que iriam liquidar posições, pois era claro que os estrangeiros iriam debandar do Brasil. Ao menos nos dois primeiros dias após a eleição, nada disso aconteceu, simplesmente tudo ficou como antes.

                O que quero enfatizar, colegas, não é esse caso específico, pois existirão vários outros nos próximos quinze anos. O que quero realmente enfatizar é que não dá para saber o que vai acontecer nos mercados no curto prazo, é muito difícil, quiçá impossível.  Se formos mudar a nossa estratégia não pela mudança nos nossos objetivos, mas sim por contingências fora do nosso controle , é muito  que vamos tomar decisões ruins, pois serão  decisão feitas quase que às cegas. É como jogar xadrez e mudar de estratégia a cada jogada, é impossível ganhar de um jogador forte cometendo esse erro primário.

                Portanto, e aqui entra um profundo auto-conhecimento e reconhecer a nossa ignorância em relação à complexidade do mundo financeiro (e a área de finanças comportamentais centra todas as suas baterias de estudo nesse estágio do processo), a manutenção da estratégia é vital para que possamos atingir nossos objetivos financeiros, para que não tomemos decisões por impulso e para que não erremos sem necessidade. Não há qualquer problema em errar. Não há qualquer problema em revisar a estratégia de forma racional e pausada de tempos em tempos. Porém, não há qualquer motivo para não se manter fiel a estratégia, principalmente levado pelo calor do momento e análises que podem ser extremamente incorretas e superficiais.

                Uma estratégia financeira serve exatamente para isso, para que as pessoas não tomem decisões impensadas no longo do caminho. O mercado muitas vezes é cíclico. O mercado imobiliário, por exemplo, é claramente cíclico. O Boom não dura para sempre, nem a fase de depressão dura para sempre. Talvez pessoas muito bem preparadas, que se dediquem a estudar o mercado imobiliário com profundidade, talvez consigam acertar os momentos corretos para posicionamentos precisos no mercado, porém isso é para poucos e com certeza não é para a maioria. Assim como uma economia às vezes opera em ciclos. Se as estratégias forem sendo alteradas pelas notícias sombrias de depressões ou pelas notícias otimistas de boom, é provável que a pessoa tenha muita, mas muita dificuldade de atingir os seus objetivos.

                No caso do nosso país, o Brasil não vai acabar. Pessoas precisarão comer, precisaram alugar lugares para ter suas padarias, fábricas, etc e empresas precisarão existir para produzir bens e serviços. Sempre foi assim na história da humanidade. O aluguel de imóveis, por exemplo, é tão antigo como a civilização humana. Assim como o mercado de dívida, eu num museu em Ancara (capital da Turquia) tive o prazer de ver um instrumento de débito naquelas placas de escrita cuneiforme dos sumérios de mais de mil anos antes de cristo. O conceito de ações remonta há mais de quinhentos anos, quando se criou, na Holanda, o conceito de que uma empresa possuída por várias pessoas poderia mitigar os riscos associados às grandes viagens lucrativas que navios europeus faziam para o extremo oriente (ideia que eu utilizo quando faço operações de alta monta).

                Portanto, o mercado de dívidas, de imóveis e de empresas existem há muito tempo na humanidade. Já teve padrão ouro, guerras mundiais, descoberta da eletricidade, comunismo soviético, fim do comunismo soviético, etc, etc, e os humanos seguiram trocando bens, mercadorias e precisando se endividar, alugar espaços ou levantar capital para empreender. Logo, acredite, é muito mais fácil manter-se fiel a uma estratégia bem elaborada, do que tentar acertar quando será o colapso permanente de uma classe de ativos ou de um país.

Desde os Sumérios há milhares de anos  os seres humanos já se endividavam, você realmente acha que isso vai mudar tão cedo ? (placa de escrita cuneiforme - não está relacionada com a placa de instrumento de dívida que vi na Turquia)

                Planeje, implante e mantenha-se fiel à sua estratégia. Tenho certeza que a probabilidade colher bons frutos é muito grande.

            Grande abraço a todos!


domingo, 26 de outubro de 2014

REFLEXÃO - VAMOS FALAR UM POUCO SOBRE LIBERDADE

                  Olá, colegas! Você é livre para dispor do seu corpo como bem entende? Os impostos são uma forma de coerção à liberdade do indivíduo? Somos escravos do Estado? São perguntas interessantes e provocativas, e estão no centro de debates teóricos e práticos no nosso mundo moderno.

                A posição libertária, como o próprio nome diz, parte do pressuposto de que o bem mais precioso do ser humano é a sua liberdade. Qualquer forma de coerção a essa liberdade é uma forma de ataque à própria dignidade do ser humano. Assim, se o Estado me cobra coercitivamente tributos, na verdade a minha liberdade e dignidade estão sendo feridas, pois se o fruto do meu trabalho é confiscado em prol da coletividade, isso nada mais é do que me obrigar a trabalhar pela coletividade de forma forçada, assemelhando-se a um trabalho escravo.

                Como assim, Soul? É simples. Se eu sou tributado em 40% da minha renda, quer dizer que em 40% do meu tempo (vamos presumir que para cada unidade de tempo corresponda uma unidade de renda) eu não estou trabalhando para mim, mas sim sendo forçado a trabalhar para os outros. Dizem os libertários mais radicais, se sou obrigado a trabalhar para os outros de forma forçada no que isso se diferenciaria da escravidão? Eu creio que essa forma de ver o mundo possui falhas. Porém, não é sobre isso que quero falar, mas sim sobre algumas conseqüências dessa forma de ver o mundo.

                Se a liberdade é o meu bem mais precioso com primazia sobre tudo mais, se posso dispor da minha liberdade da maneira que melhor me aprouver, desde que isso não fira a liberdade dos outros, isso traz conseqüências práticas bem diretas. Não haveria qualquer problema moral com o suicídio assistido, por exemplo. Aliás, não haveria qualquer problema moral com o suicídio em si.  Entretanto, avancemos mais no exercício.

                Se as pessoas possuem liberdade para dispor dos seus corpos como bem entendem, não há nada do ponto de vista dessa forma de ver o mundo, que proíba essas mesmas pessoas de se transformarem em escravos voluntários de alguém. Soul, essa hipótese é absurda. Será? Alguns anos atrás um alemão colocou um anúncio em um jornal se oferecendo para comer literalmente pessoas interessadas em vivenciar essa experiência. Dezenas de pessoas responderam ao anúncio, sendo que uma topou. Ela foi morta, e o nosso degustador bizarro foi preso quando já tinha comido boa parte do voluntário (mais informações http://pt.wikipedia.org/wiki/Armin_Meiwes). O alemão acabou sendo condenado a prisão perpétua pelo crime de assassinato. Porém, se o juiz fosse um libertário convicto, por qual motivo uma pessoa deveria ser condenada por assassinato, se outra pessoa de forma voluntária assentiu que fosse assassinada e devorada? A pessoa não possui a liberdade total sobre o seu corpo? A liberdade não é o nosso maior direito se sobrepondo a todos os outros em valor e dignidade?

                Se você ficou enojado com a história, e concordou com a condenação do Canibal de Rotemburg, então você implicitamente está questionando, mesmo que parcialmente, a ideia libertária mais radical sobre a liberdade irrestrita que temos sobre nós mesmos e que talvez haja outros bens e direitos tão importantes quanto à liberdade. Porém, avancemos ainda mais.

Um libertário mais radical em suas concepções não teria outra solução,desde que quisesse se manter coerente com seus pressupostos iniciais, a não ser inocentar o Canibal de Rotemburg. A ironia nesse caso é que o mesmo virou vegetariano na prisão, por achar que se alimentar de carne de animais confinados é um ato de extrema injustiça;

                Pressuposto básico dos libertários na área econômica é que trocas feitas por indivíduos no livre mercado, desde que esses indivíduos possuam igualdade formal (não há considerações sobre desigualdades materiais e nem nas distorções que isso pode ocasionar), é o que melhor se assemelha a um sistema social justo.  Se assim o é, desde que as pessoas livremente compactuem o que quer que seja, e desde que isso não interfira em direitos de outros, essa será considerada uma negociação justa. Pois bem.

                Se um país entra em guerra com outra nação, de quem é a responsabilidade pela defesa do país? “Do exército”, Soul, alguém pode pensar. E o Exército deve ser formado por quem? Essa não é uma pergunta simples. Há duas formas de formar um exército. Ou pelo alistamento compulsório ou pela contratação de mercenários (e mercenário aqui pode ser entendido como aquele que se dispõe a ir para guerra por troca de uma recompensa financeira). O alistamento compulsório pode ser explicado como uma obrigação cívica de todos os habitantes para com a sua nação. Porém, nenhum libertário pode sustentar essa obrigação cívica, pois essa “obrigação” (creio que um libertário não chamaria assim) não é baseada no consentimento livre, e o alistamento compulsório é uma clara violação da liberdade. Assim, parece-me claro que para um libertário a melhor alternativa será a formação de um exército de mercenários.

                Isso já vem sendo adotado em larga escala pelos EUA (na verdade até o próprio exército dos EUA é formado por pessoas que estão lá como uma carreira, não necessariamente por uma convicção) nas últimas guerras.  Poucas pessoas sabem, mas mais da metade das forças militares num determinando momento da ocupação do Iraque era formada por mercenários contratados de forma privada (um pouco mais de informação nessa reportagem da folha de 2007 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2005200701.htm). Portanto, não se pode mais falar que os EUA foram à guerra, mas sim que mercenários contratados pelos EUA foram à guerra em nome dos EUA.

                Particularmente, para mim isso é profundamente errado. A privatização da guerra possui conseqüências perversas em minha opinião. Além do mais, isso de alguma maneira acaba com um conceito muito antigo de obrigação cívica com o Estado em que você habita. Parece-me claro também que apenas pessoas, pelo menos na maioria dos casos, dos extratos sociais mais baixos se disporiam a ir combater alguma guerra. Quem escolheria ir combater num país montanhoso como o Afeganistão por dinheiro se não tivesse necessidade para tal? Poderia se falar de uma escolha realmente livre nesse caso ou simplesmente estaria se transferindo o ônus de ir para guerra para as pessoas mais pobres? Essa é uma conseqüência lógica de acreditarmos que justa é uma sociedade onde apenas sou obrigado a cumprir obrigações onde eu voluntariamente tenha aderido.

Esta era a maior empresa de serviços privados de guerra do mundo. Acusada de cometer inúmeros crimes e violações a direitos humanos no Iraque. Será que um admirável mundo novo está nascendo onde as guerras do futuro serão travadas por exércitos privatizados? 

                Qualquer outra “obrigação cívica” como ser jurado, mesário, etc, por essa perspectiva de ver o mundo, é um ato de coerção contra a liberdade e não haveria qualquer problema em ser privatizado. Aliás, isso é conseqüência até mesmo desejável para uma pessoa que acredite que a própria existência do Estado é um ato de agressão à liberdade humana, sobre essa "interessante" visão de mundo ver o meu artigo sobre o tema http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/08/reflexao-o-ato-de-fe-de-algumas-ideias.html

                Alguém poderia me dizer: “Soul isso tudo está me parecendo muito teórico, além do mais nunca fui chamado para ser jurado e o Brasil não entra em guerra com ninguém mesmo. Eu não me importo com essa discussão”. Amigos, essa discussão é extremamente importante e possui grande relevo prático.  Se o bem maior e inquestionável de um ser humano é a sua máxima liberdade, se não é possível a existência de obrigações sem um prévio consentimento, como ir para guerra, por exemplo, se o próprio conceito de obrigações cívicas é um absurdo para um libertário, então isso pode realmente significar que o ato de tributar é um ato de violência contra o indivíduo. Se não existem outras obrigações fora daquelas previamente consentidas, então o indivíduo não possui qualquer obrigação com a coletividade, não possui qualquer obrigação com a solidariedade para outros membros da sociedade e, portanto não tem qualquer obrigação pelo pagamento de tributos.  Creio que é por isso que meu amigo André do ótimo blog Viagem Lenta talvez insista tanto na filantropia. É por isso que vejo vários artigos no instituto Mises insistindo na filantropia.

                Por qual motivo a filantropia ganha relevo nessa discussão? Aqui apenas posso presumir. Todos que pensam dessa maneira reconhecem, nem que de maneira inconsciente, que sempre existirão pessoas mais necessitadas ou que temporariamente possam estar passando por problemas muito difíceis, sendo que uma simples condição de livre mercado possa não ser suficiente para dar conta desses problemas humanos. Porém, aqui se cria uma dificuldade. Se tributos nada mais são do que uma violência contra a liberdade humana, se não existem “obrigações cívicas de solidariedade”, quem será responsável por ajudar essas pessoas em dificuldade? A filantropia.  Como é possível garantir que essa filantropia irá existir em grau e volume suficientes para mitigar alguns sofrimentos humanos? Não se pode garantir, é impossível que isso seja garantido. Portanto, é necessário mais um ato de fé para abraçar completamente a forma libertária de ver o mundo: apostar no “bom coração” das pessoas.

                O leitor pode pensar: “Soul, você acha que os seres humanos são maus por natureza, é isso?”. Essa é uma ótima pergunta. Somos seres bestiais capazes de atos angelicais, ou somos anjos capazes de atos bestiais? Essa pergunta é sempre feita há milênios pelos seres humanos, e aqui adentramos no complicado tema da Natureza Humana. Eu acredito que somos apenas humanos, nem mais, nem menos do que isso. Isso quer dizer que não podemos exigir mais do que a nossa condição humana permite. Portanto, para saber do que a condição humana consiste, eu creio que devemos analisar o que é o ser humano, como ele se desenvolve, como ele evoluiu e como ele se comporta em diversas situações. Eu acredito quem melhor desenvolve essa análise atualmente é a Ciência. Portanto, eu acho quase todas as análises sobre o ser humano feitas pelas “ciências sociais” (não, leitor, estão longe de ser ciência na acepção correta do termo ramos do conhecimento como sociologia, filosofia, economia, etc) sem se importar com as mais novas descobertas da ciência são no mínimo capengas.  Esse é um tema muito interessante, e num outro artigo posso divagar mais sobre ele.

                Portanto, será que o ser humano se tornaria um filantropo para com os mais necessitados se a “sociedade ideal” dos libertários existisse ou isso é apenas um ato de fé? Não sei, mas um bom começo seria entender o que os mais diversos ramos da ciência tem a dizer sobre isso. A busca poderia começar sobre o próprio conceito fundamental para os libertários: o que a nossa evolução enquanto espécie, e o que a ciência hoje em dia tem a dizer sobre a individualidade? Ela é a única e principal característica a nos moldar enquanto espécie ou há outras coisas mais como solidariedade ao grupo, por exemplo?

Apenas um palpite, mas acho que iremos encontrar muitas respostas mais precisas para inúmeros questionamentos sobre o ser humano aqui, do que em livros sobre economia ou filosofia.

              
  É isso colegas, grande abraço a todos!

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

ELEIÇÃO PRESIDENCIAL - NÃO É UMA QUESTÃO DE CARÁTER, MAS SIM DE RESPEITO

                Olá, colegas! Próximo domingo o povo brasileiro irá escolher o próximo presidente para os próximos quatro anos. Dizem os especialistas, e eu concordo com eles, que há muita coisa em jogo. Não irei comentar sobre o que acho que pode acontecer com a vitória do Aécio ou com a vitória da Dilma. Aliás, nem sei se sou capaz de fazer comentários sobre esse tópico sem descambar para o “achismo”. Não, hoje comento sobre a nossa postura enquanto povo, e indivíduos, em relação a esta eleição.

                Num país onde cada vez mais uma opinião contrária é tratada com intolerância, não é de se estranhar que numa eleição presidencial tão disputada como essa os ânimos fiquem mais acirrados. Porém, eu acho que estamos passando de alguns limites. Ataques pessoais pelo jornal, pela televisão, pelas redes sociais, isso tudo porque alguma pessoa comete a heresia de dizer que vai votar no outro candidato. Há pessoas que dizem que “pessoas de bem” (eu sempre achei essa expressão sem qualquer sentido, mas não irei comentar os motivos nesse artigo) devem votar em Aécio. Assim, se outra pessoa vota na Dilma, ela automaticamente se transforma numa “pessoa do mal”, seja lá o que isso possa significar. Pessoas preocupadas com os mais desafortunados devem votar em Dilma, pois quem não o faz é uma pessoa egoísta “da elite”.  Falando seriamente com os poucos, mas muito instruídos em sua maioria, leitores desse blog: é isso que queremos para o nosso país? É essa a qualidade da convivência, da harmonia, e do respeito que queremos ter com os nossos compatriotas? Se a resposta for sim, só posso ficar triste e um pouco decepcionado.

                Amigos, essa eleição não é para descobrir quem se preocupa mais com os pobres ou quem é ou não uma “pessoa de bem”. Eu, por exemplo. Iria votar na Marina, mas acabei votando no Aécio no primeiro turno. Irei repetir o meu voto no senador mineiro no próximo domingo. Isso não me transforma numa pessoa mais iluminada, mais inteligente ou mais “do bem” do que outra pessoa que porventura possa estar inclinada a votar na Dilma.

                Ontem, eu perguntei para a senhora que lava a minha roupa (eu levo a roupa para a senhora lavar, faço isso desde a minha época da faculdade) em quem ela ia votar. Ela me respondeu que iria votar na Dilma. Essa senhora deve ter os seus sessenta e poucos anos. Ela é aposentada por invalidez, pois tem um grave problema na perna. Mesmo com esse problema, ela sobe e desce várias vezes ao dia a escada da sua casa, e lava sacos e sacos de roupa todos os dias para ter uma renda extra à sua aposentadoria. É uma pessoa extremamente educada, sempre me recebendo com cortesia e sorrisos. Esforçou-se para que seus filhos estudassem, tanto que um hoje é funcionário no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, se não me engano. É uma mulher sofrida, que sofre com dores diárias por causa da sua perna, trabalhadeira e extremamente honesta (o preço cobrado sempre foi muito justo).

                Essa mulher, por acaso, não é “do bem”, pois irá votar na Dilma? Essa mulher vai votar na Dilma, pois é dependente de “esmolas governamentais”, como algumas pessoas também falam sobre os eleitores de Dilma?  Evidentemente que não. Mas, Soul, ela está equivocada, e a contabilidade criativa, e o nosso déficit nominal batendo 4% do PIB, e a inflação e o crescimento, e a intervenção desastrada do governo na economia, etc, como é que fica? São por estes, e por outros, motivos que irei votar no Aécio. Porém, eu não tenho a pretensão de ser o dono da verdade, e mesmo achando que votar na Dilma no domingo não seja a melhor alternativa, isso não me dá o direito de menosprezar ou desrespeitar pessoas com posicionamentos diferentes.

                No fundo, esse antagonismo forte entre as pessoas em nossa eleição para mim é apenas a conseqüência de algo mais profundo que infelizmente está ocorrendo em nossa sociedade brasileira: a profunda falta de respeito das pessoas entre si. Não é à toa que o nosso trânsito virou uma guerra, que sair na noite pode resultar em ferimentos por agressão de alguma pessoa esquentada, etc.

                Precisamos (re)aprender a empatia. É apenas quando sentimos empatia que podemos tentar nos colocar no lugar do outro. É apenas tentando se ver no lugar do próximo é que conseguimos talvez entender as motivações, as frustrações, decepções, raivas, de alguém com alguma coisa. No filme Tróia, depois de Aquiles ter matado o príncipe de Tróia e grande guerreiro Hector e puxado o seu corpo pelo chão sem qualquer respeito, o guerreiro mítico é confrontado com o Rei de Tróia em sua cabana. Príamo, o Rei, pede a Aquiles que devolva o corpo do seu filho  para que Hector ter um enterro digno. Aquiles então pergunta para o Rei: “ Por qual motivo você acha que eu devolvendo o corpo do seu filho, nós não continuaremos inimigos amanhã?” O Rei então responde: “O que o faz pensar que não somos inimigos agora? Porém, mesmo entre inimigos deve existir respeito”.

                Essa última frase de Príamo sempre me marcou. Se um Rei deve respeitar uma pessoa que matou o seu próprio filho, por qual motivo nós devemos desrespeitar as pessoas por ter opiniões diferentes sobre determinados assuntos? Por qual motivo não podemos apenas compreender que as pessoas são diferentes, possuem interesses diferentes e às vezes pensam de forma diferente? Isso em hipótese nenhuma quer dizer concordância com opiniões ou situações em que achamos injustas ou incorretas, como bem dito pelo rei ao dizer que ele e Aquiles ainda eram inimigos, mas isso não deve turvar a nossa compreensão ou os nossos gestos, e nos levar a ser desrespeitosos ou grosseiros com quem quer que seja.

               O que nós enquanto sociedade preferimos? 



 Isso
Ou isso (militantes do PT e do PSDB trocam agressões no dia 23/10/2014, parecendo que a eleição presidencial virou briga de torcida organizada)?

                     Por isso, colegas, votem com consciência no domingo. Exerçam a sua cidadania, porém respeitem outras pessoas e outros posicionamentos, mesmo que outras pessoas não respeitem os seus.

         Grande abraço a todos!

terça-feira, 21 de outubro de 2014

REFLEXÃO - COMO É UMA SOCIEDADE JUSTA?

Olá, colegas. Hoje abordo um tema para lá de espinhoso do ponto de vista conceitual e prático: Justiça. O que é justo? Como se devem repartir os bens e as honrarias numa sociedade? A justiça se confunde com respeito a liberdade? Todas essas são indagações que grandes filósofos fizeram a si mesmos e tentaram fornecer alguma resposta. Obviamente, eu não vou fazer um tratado sobre o pensamento de grandes filósofos sobre o que é Justiça, até porque me falta muito conhecimento para tanto e este artigo será bem breve. Porém, resolvi escrever sobre o tema, pois estou relendo um livro muito bacana de um professor de filosofia de Harvard chamado: “Justiça, o que é fazer a coisa certa”.  Há muitos insights bacanas no livro, e o escritor consegue abordar temas complexos com grande sagacidade. É uma leitura fácil e boa para descontrair de outras leituras porventura mais pesadas.

Um ótimo livro para se ler e refletir sobre diversos temas. O autor é muito bom e consegue transmitir ideias complexas (como a ideias sobre Justiça e liberdade do grande filósofo Immanuel Kant) de forma bem agradável.

                Como dito o livro possui muitas passagens interessantes, mas vou me ater apenas numa, na parte em que o autor aborda as idéias do filósofo político americano do século passado John Rawls  sobre Justiça. Para esse pensador, parte significativa do sucesso das pessoas numa sociedade de mercado se baseia não em virtudes morais, mas apenas em acasos históricos e biológicos.  Falarei mais sobre essa interessante ideia. Antes, resumo as grandes concepções sobre justiça numa sociedade em relação à distribuição de bens e honrarias:

1)      Sistema feudal ou de castas– Em sociedades assim constituídas, a atribuição de bens e posições sociais elevadas está diretamente relacionada com castas hereditárias. A Índia é um país onde apesar do sistemas de diferenciação por castas ser ilegal na teoria, ainda é muito empregado na prática. Evidentemente, essa concepção é negada pela esmagadora maioria dos ocidentais, pois aos nossos olhos ela é completamente injusta;
2)      Concepção libertária – livre mercado com igualdade formal de oportunidades – É aqui que talvez se encaixa a posição da escola austríaca de economia e talvez de alguns amigos da blogosfera;
3)      Concepção meritocrática  - livre mercado mas com igualdade real de oportunidades. É aqui onde o meu pensamento se encaixa, pois entendo que apenas uma igualdade formal de oportunidades não é suficiente, pelo contrário pode apenas perpetuar injustiças e impossibilitar uma real competição justa;
4)      Concepção Igualitária – baseada no princípio da diferença do filósofo John Rawls.

Assim, para um libertário, ou simpatizante da teoria do Estado Mínimo, justa é uma sociedade onde haja liberdade de iniciativa com a garantia formal de que todos podem ter acesso aos mesmos direitos e bens. Para uma pessoa como eu, uma sociedade justa é aquela que permite que todos os seus membros possam concorrer num ambiente livre, mas em condições de igualdade. Assim, um garoto nascido na República Democrática do Congo não poderá concorrer num mercado internacional globalizado em condições de igualdade com um garoto nascido na Dinamarca. Na verdade, não há qualquer competição. É como dois corredores numa corrida de 100 metros rasos, mas um deles com 40kg amarrados na perna. A competição não é justa. Por isso, gosto da forma de administração dos países escandinavos, com respeito a liberdade, livre iniciativa, mas com grande participação estatal em setores vitais como saúde e educação.

Entretanto, para o filósofo John Rawls nem mesmo a concepção meritocrática de sociedade é justa, pois os atributos que uma determinada sociedade valoriza num momento histórico específico não são distribuídos igualitariamente na sociedade, não se podendo falar, portanto de uma competição justa entre os membros da sociedade.

Soul, como assim? Peguemos a inteligência. A inteligência tem um forte componente genético. Uma criança é inteligente, ou uma pessoa é inteligente, não necessariamente por esforços ou virtudes morais próprias, mas sim porque simplesmente nasceu assim. Logo, se essa pessoa se transformar no criador do Facebook, talvez não haja tanta virtude moral nessa conquista. Peguemos o exemplo dos corredores. Mesmo que os corredores comecem com igualdades materiais de condições, um corredor mais rápido, pois geneticamente assim nasceu, sempre terá vantagem sobre outros corredores, sem que possamos atribuir qualquer virtude moral para tanto.

Eu sempre me questionei sobre isso, e fiquei feliz de ter contato, mesmo que de forma indireta, com o pensamento de Rawls. Sempre me perguntei qual é a  Justiça em eu ter um grande padrão de renda e uma ótima vida , se eu nasci com todas as chances favoráveis para que isso ocorresse. Eu ainda pensava por qual motivo certas habilidades são muito valorizadas em algumas sociedades  em detrimento de outras habilidades. Isso não é apenas sorte ou um acidente histórico? Se numa sociedade se valoriza muito mais chutar uma bola do que refletir sobre o cosmos, qual é a virtude moral de um jogador de futebol nisso? E se fosse uma sociedade onde se valorizasse muito mais as pessoas com habilidades para refletir sobre o cosmos do que para chutar uma bola? Eu sempre achei que isso tudo não passava de sorte.

Esse tipo de pensamento me faz ter uma postura mais humilde hoje em dia por eventuais “sucessos” meus. Talvez esses “sucessos” sejam apenas frutos do acaso de circunstâncias sociais aleatórias e acidentais.  Talvez, se eu vivesse numa sociedade onde a capacidade de sobrevivência num ambiente natural hostil fosse muito mais valorizada, eu talvez estivesse nos estratos mais baixos da sociedade, pois essa é uma habilidade quase inexistente em mim.

Rawls reconhece que isso é um fato da vida. Tendo em vista essa aleatoriedade na distribuição das habilidades e a mera sorte (ou azar) de uma pessoa ter as suas habilidades reconhecidas numa determinada sociedade, o filósofo cria o princípio da equidade na distribuição de bens numa sociedade. Para ele, diferenças na distribuição dos bens (como diferenças de rendas) só podem ser justificadas se essa diferença de alguma maneira contribua para o bem-estar geral das pessoas menos aquinhoadas

 A ideia dele é diferente e sujeita algumas críticas, algo que não farei aqui até por não ter conhecimento mais profundo sobre o filósofo. Porém, essa forma de ver a Justiça produz reflexões muito interessantes e, pelo menos para mim, me faz ver a vida de uma maneira mais humilde.

John Rawls. Os grandes filósofos geralmente são europeus, mas as ideias sobre Justiça de Rawls são extremamente provocativas e interessantes, o que o coloca como um dos grandes pensadores do século passado.

E você, qual é a sua concepção de Justiça? Já parou para pensar nisso? Grande abraço!



sábado, 11 de outubro de 2014

OS CAMPOS DA MORTE

                Olá, colegas! A briga pelo segundo turno já começou e com ela a baixaria. Como é muito difícil manter conversas construtivas num clima tão polarizado, vou deixar nesse artigo o futuro eleitoral do nosso país de lado. Iria escrever sobre minhas experiências no Nepal, mas ontem de noite assisti a um filme muito bacana com tradução para o português de “Um herói do nosso Tempo”, mas  o título original é muito mais interessante “Va, vis  et deviens” (vá, viva e transforme-se).  A história é interessantíssima e o filme muito bem construído. Algumas partes do filme se passam num campo de refugiados no Sudão, e isso me fez lembrar de algumas experiências minhas em lugares que nunca deveriam ser esquecidos pelos seres humanos.

Belíssimo filme que vi e me inspirou a escrever o presente artigo.

                Quando escrevi o artigo http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/05/brasil-e-tao-ruim-assim.html, muitos comentários foram no sentido de que não poderíamos comparar o nosso país com países muito piores, que a nossa “obrigação” era sempre olhar para o andar de cima do mundo.  É uma postura com que concordo, pois realmente devemos mirar em povos que conseguiram alcançar um bom estágio de desenvolvimento humano e social para que possamos ter metas tangíveis de melhora. Por outro lado, discordo, pois me parece uma visão um pouco desumanizada sobre o sofrimento humano e não nos faz valorizar aspectos da nossa vida que parecem triviais e dados como certos para muitos, mas que não o são e a história possui diversos exemplos para nos mostrar.

                Atualmente, reclama-se, e com razão, dos altos índices de violência e criminalidade que assolam nosso país. Porém, alguém já imaginou sendo retirado de sua casa com toda a família, colocado num trem lotado (pense em algum transporte público numa capital brasileira em horário de pico) para fazer uma viagem às vezes de dias, sem comida e água, para chegar ao destino e poucas horas depois ser enviado para uma câmara de gás com centenas de outras pessoas? É possível visualizar mentalmente ou o absurdo da situação é tão grande que nós não conseguimos nem por um instante nos colocar nessa situação?

                Um dos motivos que não gosto de reclamar tanto, ou usar palavras como “absurdo” para algum problema trivial do cotidiano é pensar na situação descrita no parágrafo anterior. Se uma pessoa “roubar” uma vaga de estacionamento num shopping de outra pessoa é um “absurdo”, qual é a palavra que pode descrever o que aconteceu no parágrafo anterior? Não existe palavra e é por isso que foi inventada uma: Holocausto.  Há uma cena lindíssima do melhor filme de todos os tempos, ao menos em minha opinião, onde Oscar Schindler e Isaac Stern discutem sobre como as palavras teriam perdido o sentido para descrever a situação dos judeus nos primeiros anos da década de 40 e como talvez fosse necessária a criação de novas palavras.   Eu creio muito na força das palavras, e acho que palavras que denotem uma situação de extrema injustiça devem ser usadas para situações de extrema injustiça, não para qualquer problema trivial, sob pena de banalizarmos as palavras e talvez por meio desse processo a nossa própria atitude frente às situações.

                Este não é um artigo detalhado sobre história, mas sim apenas minhas percepções breves e talvez até rasas sobre minha experiência com alguns campos da morte.  Minha primeira viagem de “mochileiro” , como a maioria das pessoas, foi para a Europa. Eu já tinha ido para Europa diversas vezes quando adolescente jogar campeonatos mundiais de xadrez, mas essa era a primeira vez que eu viajava pelo velho mundo como adulto. Um dos destinos que eu fiz questão de conhecer, estava viajando com um amigo, era a cidade de Cracóvia no sul da Polônia.  A cidade em si é muito bonita, possui diversas atrações turísticas, entre elas uma famosa mina de sal. Porém, a minha principal vontade em ir para o sul da Polônia era conhecer o maior campo de concentração nazista da Europa: Auschwitz.

A cidade da Cracóvia no Sul da Polônia é muito bonita

                Eu não era guiado por uma curiosidade mórbida, pois isso é algo que ainda bem não possuo, mas sim porque a história do holocausto judeu me tocava e toca profundamente com algo que me faz humano. Como dito anteriormente, um dos filmes que mais gosto é “A Lista de Schindler”, é o único filme que fiz questão de comprar, eu já vi mais de 10 vezes, e todas vezes eu sempre me emociono. Como já vi o filme diversas vezes, eu pude observar a riqueza de detalhes das falas, da construção dos cenários, eu até mesmo sei de cor boa parte das falas do filme. Há tantas cenas doloridas para o espírito humano, há tantas cenas de engrandecimento deste mesmo espírito humano, há tanto simbolismo nas falas. Uma das últimas cenas do filme, quando a Alemanha se rende incondicionalmente e Schindler é obrigado a fugir, para mim é algo espetacular. Schindler recebe um anel dos judeus que trabalhavam em sua fábrica com os seguintes dizeres: “Aquele que salva uma vida, salva o mundo inteiro”. Para mim essa é a frase mais bonita que eu já vi na vida. Ao ver os dizeres, mesmo depois de ter salvado 1100 seres humanos, Schindler se questiona por qual motivo ele não fez mais, por qual motivo ele manteve o carro, pois se ele vendesse poderia ter salvado mais 10 vidas, ao final ele olha para o seu broche de ouro do partido nazista e questiona-se por qual motivo o manteve, pois com aquele simples broche de ouro (e aqui o simbolismo de um broche representando o próprio nazismo) ele poderia ter salvado uma vida humana, ele poderia ter salvado o mundo inteiro. Após essa reflexão ele começa a chorar copiosamente sendo abraçado por dezenas de judeus, eu sempre me emociono quando vejo essa cena.

Uma das cenas mais belas do cinema em minha opinião. Em um momento de reflexão, Schindler se questiona  por qual motivo desperdiçou tanto dinheiro em festas, mulheres, e por que não salvou mais pessoas. Essa cena sempre fica na minha cabeça, pois sempre penso que nós não podemos obter a paz e a felicidade plena se há miséria humana ao nosso redor. Nós não encontraremos satisfação apenas no prazer e no consumo. O meu artigo sobre as finalidades do dinheiro tenta abordar essa temática. São apenas 3 minutos de cena, e eu recomendo para as pessoas que nunca viram o filme ou não se lembram da cena.

                Portanto, eu tinha uma vontade muito grande de conhecer Auschwitz. O campo de concentração fica a uma hora da Cracóvia e na verdade eram três campos. Dois campos eram para prisioneiros e um era para produção industrial. Diversas empresas importantes se aproveitaram de mão de obra escrava judia, uma delas a IG Farben (que na verdade era um conglomerado de empresas) era formada pela famosa e insuspeita Bayer.

O campo de Birkenau (Auschwitz II) era imenso

                Duas coisas me marcaram fortemente como primeiras impressões ao chegar ao local. A primeira foi a inscrição “Arbeit macht frei” na entrada do Campo I. A tradução é “O trabalho liberta”.  A segunda foi que o campo I é bonito. Tanto que depois que voltei ao Brasil e mostrei as fotos para a minha família, minha irmã olhou uma foto e falou “Nossa, que lugar bonito, onde é?”, eu respondi “Auschwitz”, ela ficou quieta. Depois disso, eu entendi perfeitamente porque o filme “A Lista de Schindler” é em preto e branco. As cores trazem vida e significado à  nossa existência humana. Até um dos lugares mais horríveis que o ser humano já criou era bonito pela presença de cores. Spielberg quis retirar qualquer traço de beleza que poderia existir na história, alguns anos depois de refletir sobre isso eu vi uma entrevista do diretor e foi exatamente essa a razão do filme não ter cor.

 O trabalho liberta. Os judeus que não eram assassinados logo na chegada do campo eram submetidos a jornadas de trabalho de muitas horas, sem comida e sem proteção contra o frio. Muitos sobreviviam apenas algumas semanas em condições tão precárias de vida.
A cor realmente dá vida e beleza a tudo na vida. Entrada do campo II - Birkenau - conhecido como os trilhos da morte. 

                Os números não são precisos, mas se estimam que 1.5 milhões de seres humanos tenham perecido nos campos de Auschwitz. O dia que passei lá foi intenso, triste, reflexivo. Como esquecer a sensação de entrar numa câmera de gás ou num crematório de corpos? Como entender a perda de significado da vida frente a um acontecimento tão absurdo para a nossa mente bem nutrida e bem protegida de uma pessoa nascida na década de 80? Como explicar que os seres humanos não cumpriram a promessa feita depois do Holocausto: “NEVER AGAIN”. E isso me leva a um país desconhecido por muitos, e o seu genocídio ignorado por quase todos.

                Não irei escrever detalhadamente sobre o Camboja. Pretendo fazer isso num artigo específico, pois o Camboja para mim é um país com uma história fascinante com uma “lição de vida” para países, instituições e indivíduos de como o auge e o sucesso podem ser transitórios e como se pode mergulhar no caos absoluto, mesmo com um passado glorioso.

                O Camboja é um pequeno país localizado sudeste asiático. Dentre os séculos V a XIV foi o centro de um dos impérios mais poderosos que a humanidade já viu: O império Khmer. A grandiosidade desse império pode ainda ser vista nas ruínas do complexo de Angkor, uma das atrações turísticas mais fantásticas de todo o mundo. As construções maias da América Central ou dos povos pré-colombianos da América do Sul empalidecem frente à imponência de Angkor. Para se ter uma ideia, no século XII quando se estima que haveria 50 mil habitantes em Londres, havia 1 milhão de pessoas morando no complexo de Angkor. Londres chegaria a um milhão de habitantes apenas no começo do século XIX, ou seja, 700 anos depois.

Complexo de Angkor, com o seu maior tempo o Angkor Wat. Capital de um império poderoso, uma cidade que se estendia por dezenas de quilômetros quadrados.

                Não se sabe ao certo a razão para a queda do império Khmer, mas a explicação mais aceita pelos historiadores é que o império colapsou devido a uma grande crise nos seus recursos hídricos. Isso é apenas mais um exemplo histórico, há vários outros, de que sociedades podem colapsar devido à exaustão ou super-exploração dos recursos naturais básicos para a manutenção da vida. Por isso, eu simplesmente fico estarrecido com a pouca ênfase que se dá ao debate ambiental e ao nosso crescimento insustentável. Pior ainda, a politização do debate, como se os recursos naturais fossem infinitos.

                Com o declínio da civilização Khmer, o Camboja nos próximos 800 anos se transformaria num país pobre. Com o desenrolar da guerra do Vietnã (para um insight meu sobre esse país maravilhoso http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/07/vietna-guerra-americana_3.html), o Camboja foi arrastado para a guerra por causa de bombardeios ilegais feitos pelos EUA no país.  Estes bombardeios fortaleceram uma organização guerrilheira de orientação marxista (eu fico pensando o que o filósofo, economista e sociólogo alemão Karl Marx ia achar de ver o seu nome associado a um grupo armado agrícola) chamada Khmer Vermelho do infame líder  Pol Pot. Se não fossem os ataques americanos ao país, dificilmente o Khmer Vermelho teria apoio de parte da população e conseguiria tomar a capital do país Phnom Penh  em 1975.

                A capital do país foi a primeira cidade que visitei no Camboja. É uma cidade pobre com inúmeros problemas de infra-estrutura, pelo menos quando visitei em 2009. Eu vejo sempre com muita alegria notícias sobre o desenvolvimento econômico do país, e talvez a situação cinco anos depois esteja melhor. Duas coisas me chamaram muita a atenção no meu primeiro dia no país. A primeira foi a quantidade imensa de veículos da ONU e de organizações internacionais na cidade (eu nunca tinha visto um carro da ONU pessoalmente) e isso se deve porque há cinco anos, não sei como está a situação agora, a ajuda internacional era essencial para manter serviços mínimos de atendimento à população. A segunda coisa, e isso me marcou muito, foi a quantidade de pessoas desfiguradas pedindo dinheiro, algo que eu apenas veria novamente dois anos depois em algumas cidades da Índia. Aquilo me chocou de uma maneira muito profunda, que eu não conseguia entender como eu podia ter uma vida tão boa e tantas pessoas uma vida tão miserável, vi pessoas sem dois braços, sem braços e pernas, desfiguradas no rosto, todas pedindo alguns centavos de dólar. Quando voltei ao pequeno hotel que estava hospedado, eu não me segurei e chorei. Eu mal sabia que a experiência mais tenebrosa da minha vida iria acontecer no dia seguinte.

                Quando o Khmer Vermelho tomou a capital do país em 1975, ele foi saudado pela população, os cambojanos não sabiam o destino negro que os aguardavam nos próximos anos, num dos piores acontecimentos da história da humanidade. O Khmer Vermelho possuía uma utopia de uma sociedade agrária perfeita e uma abominação ao conhecimento, pois era o conhecimento que estaria causando a degradação da sociedade cambojana.. Pouco tempo depois de assumir o controle, o Khmer Vermelho ordenou que todas as cidades fossem esvaziadas. Você não leu errado, todos os cambojanos que viviam em cidades foram obrigados a deixar os seus lares e irem morar em campos rurais de trabalho forçado. A primeira vez que vi fotos desse deslocamento humano de proporções gigantescas foi algo aterrador.

Abril de 1975, evacuação forçada de toda população de Phnom Penh. Muitos estavam sendo evacuados para a própria morte. É incrível pensar que há dezenas de milhões de descolados no planeta terra em pleno ano de 2014. Uma das maiores tragédias das guerras modernas são os imensos deslocamentos humanos que elas provocam.

                Opositores políticos, médicos, professores, empresários, todos começaram a ser perseguidos e assassinados. Muitos assassinatos ocorriam em “Kiling Fields” e é desses lugares que eu tirei o título desse artigo. O conhecimento foi banido, quem possuísse qualquer habilidade intelectual era assassinado, toda a população foi deslocada para trabalhos forçados em campos rurais e uma era negra para o antigo império Khmer, e também para toda a humanidade, começou.

                O assassinato de quase toda classe intelectual e o abandono das cidades levou o país ao colapso econômico, e uma grave crise de fome se instalou. O que se seguiu foram assassinatos em massa, inclusive de bebês, fome, inanição e morte. Não se sabe ao certo o número de pessoas mortas no período de terror de 4 anos, mas se estimam entre 2 e 3 milhões de pessoas numa população na década de 70 de algo em torno de 8 milhões. Imagine todas as pessoas que você conhece  e uma em cada quarto pessoas morrendo de inanição ou assassinada. Faça esse exercício numa grande avenida movimentada, foi exatamente isso o que ocorreu no Camboja sobre o olhar complacente do mundo, desrespeitando a promessa feita depois do Holocausto Judeu (houve também o holocausto cigano, mas esse é pouquíssimo comentado): NEVER AGAIN.

                Eu visitei um Kiling Field nos arredores de Phnom Pehn e foi uma experiência quase que surreal. Ao contrário de Auschwitz onde havia literalmente milhares de pessoas visitando os campos (com alguns comportamentos lamentáveis como falar alto, sorrir para fotos, etc), no campo da morte cambojano não havia ninguém. Eu andei pelo campo apenas escutando o som do vento nas árvores e ao final observando o monumento no centro do campo com milhares de caveiras humanas. Eu não consigo descrever o que senti, porém no mesmo dia eu iria visitar um lugar ainda mais sombrio: A Prisão S-21 Tolueng, hoje transformada no museu Tuol Sleng Genocide Museum.

Um lugar tão belo não parece que foi palco de assassinatos em massa. O monumento também muito bonito guarda milhares de crânios humanos no seu interior.

                Quando escrevi sobre a incompreensão dos direitos humanos (http://pensamentosfinanceiros.blogspot.com.br/2014/08/reflexao-incompreensao-sobre-os.html), algumas pessoas, talvez premidas ou impactadas por algum ato de violência contra si ou familiares, não entenderam a importância fundamental  dos direitos humanos. A prisão S-21 foi um dos lugares sombrios onde a existência de qualquer direito humano foi negada. Uma escola na capital do Camboja foi transformada numa prisão para prisioneiros políticos. As torturas que lá aconteciam eram terríveis. Ao visitar o museu, se deixou as salas de aula ( que tinham sido transformadas em salas de tortura pelo Khmer Vermelho), do jeito que haviam sido encontradas com o fim do regime assassino de Pol Pot.  Além disso, havia uma foto gigante de como os corpos de cada uma das celas foram encontrados, e as imagens até hoje de vez em quando voltam à minha mente. Foram algumas horas onde as minhas noções do que é certo ou errado, justo ou injusto, ficaram tão sem sentido, tão pequenas e mesquinhas, que eu apenas sucumbi às diversas imagens do museu.
Uma sala de aula transformada numa sala de tortura na infame prisão S21 em Phnom Pehn. Aqui não havia direitos humanos, não havia dignidade, não havia nada, apenas um grande vazio e uma grande feriada aberta na humanidade. Esse foi o lugar que mais me chocou em toda a minha vida pela crueza de como tudo está exposto. 

                Eu disse que não ia escrever muito  sobre a história do Camboja, mas acabei falando um pouco.  O Khmer Vermelho foi retirado do poder pelo Vietnã. O Vietnã libertou os cambojanos do terror do Angka, como a instituição era conhecida, em 1979 . Até hoje nunca li ou ouvi alguém da comunidade internacional agradecendo o Vietnã por isso (como fazem com os EUA na libertação de parte da Europa dos nazistas, por exemplo), pelo contrário até 1991 o Khmer Vermelho tinha assento na ONU, bem como o Vietnã era visto como uma potência agressora.

                Eu quando estava no país comprei e li um livro muito triste, mas um Best Seller no país, chamado “First They Killed My Father” que é um relato de uma adolescente sobre tudo o que aconteceu no Camboja nesses quatro anos trágicos sob sua perspectiva.  Como muito provavelmente ninguém irá ler esse livro, eu recomendo o filme “Gritos do Silêncio”  que retrata também o que aconteceu com esse país durante o período do Khmer Vermelho.
Um relato pungente e emocionante da história de uma adolescente nos tempos sombrios do Camboja entre 1975-1979.

Um grande filme sobre a história recente do Camboja. Ganhou três Oscar em 1984 se não me engano. No Brasil, o título foi traduzido para "Os Gritos do Silêncio". Recomendo.

                Apesar do horror passado pelos cambojanos, da pobreza do país, eu vi um povo sorridente, trabalhador e extremamente simpático. Para mim o povo cambojano é uma das inspirações para sorrir quando estou triste ou para me acalmar quando algum “problema” me tira do sério.

                Infelizmente, a promessa NEVER AGAIN já foi quebrada várias vezes como no genocídio Tutsi de 1994 em Ruanda, como no genocídio atual do Sudão e infelizmente também no Sudão do Sul, como está acontecendo na República Democrática do Congo ou como está acontecendo na Síria e nas regiões dominadas pelo ISIS.  Enquanto nós humanos permitirmos que violações de direitos humanos dessa magnitude ocorram contra populações inteiras, nunca poderemos ser realmente felizes enquanto espécie, e para mim nem mesmo em nível individual.

                Essas foram as minhas experiências nos campos da morte. A experiência em Auschwitz foi intensa, mas a estada no Camboja foi muito forte. Eu me questionei várias vezes sobre meus valores, minha vida, minha noções do que é certo e errado e sobre a injustiça da distribuição de riqueza enquanto estava lá. Hoje posso ver que me ajudou muito a ser uma pessoa mais calma, a tentar respeitar mais outros seres humanos e a colocar em perspectiva os meus "problemas" e ver que eles não são tão problemáticos assim.

                É isso amigo, um grande abraço a todos!
                

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

DEBATE ELEITORAL - O FIASCO

                Olá, colegas. Mais um artigo que provavelmente irá cair no esquecimento depois de cinco de outubro, pois não é um tema que possui contornos de perenidade. Apesar de gostar de escrever sobre assuntos mais universais, não deixa de ser interessante olhar para artigos escritos sobre fatos passados ocorridos e ver o quão acertada ou errada foi uma determinada visão ou previsão. Esse talvez seja um teste interessante. Há pesquisas que analisam ex-post (isso é depois do fato) diversas previsões de especialistas, e os resultados costumam mostrar que os especialistas não possuem muito poder em  antecipar acontecimentos, porém acho que aqui me distancio um pouco do tema que pretendo abordar.

                O último debate presidenciável ontem foi um verdadeiro fiasco nacional, em minha opinião.  Houve tantos erros, tantos deslizes, que deu um pouco de vergonha do nível do debate para um cargo tão importante como presidente de um país tão grande como o Brasil. Listarei apenas alguns nos próximos parágrafos.

                Pastor Everaldo, o “levantador”.  A primeira pergunta do Pastor Everaldo para o Aécio Neves parecia um encontro de dois amigos no bar, o Everaldo levantava e a função do Aécio era cortar na forma de críticas ao governo. A situação ficou tão ridícula que na segunda pergunta do Pastor Everaldo para o Aécio (ele só perguntava para o Aécio ou Marina) o tema era previdência, mas o Pastor veio com uma narração e uma "pergunta levantamento" sobre o PAC. O moderador do debate, corretamente, determinou que se começasse tudo de novo, já que  a pergunta deveria abranger algum aspecto da área temática escolhida. Sem jeito, como uma criança que cometeu algum deslize, o candidato soltou essa bela pergunta: “Candidato Aécio, o que você acha do sistema previdenciário?”.  A cena foi ridícula.

                Fidelix, o “Alterado”.  O candidato Levy Fidelix estava visivelmente nervoso nos primeiros dois blocos, sendo que nos últimos estava murcho.  Pode-se discutir se a declaração dele no último debate da TV Record foi homofóbica ou não, porém o fato é que a declaração foi no mínimo fora do tom, principalmente para ser feita por um candidato à presidência do Brasil. Fidelix recebeu uma pergunta do Eduardo Jorge e deu uma resposta pífia, sendo que foi contestado com altivez por Eduardo Jorge. Não satisfeito, resolveu insistir no tema com a candidata Luciana Genro e tomou uma resposta irrepreensível da candidata do PSOL. No final, acabei ficando com pena do Levy Fidelix.

                Marina, a “Não-assessorada”. Quando do segundo bloco, a Marina deveria perguntar para Dilma sobre o tema “papel do banco central”. Quando ela começou a fazer a pergunta sobre a aparente contradição de posicionamento de Dilma sobre a autonomia do banco central, eu apenas falei em voz alta com a minha mulher: “sério, ela não pode ser tão tola de fazer isso, ela não foi assessorada?”. Dito e feito. A Dilma tripudiou de Marina, pois toda bateria de fogo do PT nunca foi contra a autonomia do BC, mas sim contra a ideia de Independência. O eleitor comum, e talvez nem o especializado, pode saber muito bem distinguir a ideia de um banco central “independente” de um banco central “autônomo”, porém qualquer pessoa sabe distinguir quando uma pessoa é pega em ato falho, e foi exatamente o que a candidata Dilma fez com Marina. Ela poderia perguntar tantas coisas sobre o BC, como sobre a atual ingerência do governo nas políticas monetárias, por exemplo, mas preferiu fazer um “levantamento “ ao contrário para a sua concorrente. Não satisfeita, Marina ainda perguntou/afirmou que Dilma não teria capacidade gerencial, pois nem vereadora tinha sido. Dilma, da minha forma de ver corretamente, apenas indagou Marina que Nova Política era essa de que para exercer um cargo público uma pessoa deveria ter sido política, ainda ironizou dizendo que essa não é uma exigência prevista na Constituição para ser Presidente da República. Ficou evidente que Marina quis partir para o confronto de qualquer maneira, talvez pressionada pela queda nas pesquisas, e o fez de maneira destrambelhada e sem qualquer estratégia.

                "O Brasil Encantado de Dilma”.  Para a nossa presidente tudo começou em 2003, e todas as conquistas sociais e econômicas só podem ser creditadas aos governos do PT. Conclamada pelo candidato Aécio a ser mais “generosa”, e admitir os avanços na estabilidade econômica, bem como o fato do bolsa-família ser um aprimoramento de programas sociais construídos no governo FHC, a mesma apenas ignorou. Indagada sobre problemas na economia, educação, saneamento, habitação, a resposta era quase sempre no mesmo tom: “Nunca antes na História desse nosso país (colocar aqui alguma coisa positiva)...”. Alguém pode dizer, mas não foi sempre assim? Sim, foi apenas mais do mesmo, o que demonstra uma grande miopia para os graves problemas que estão se avolumando no nosso país, e uma grande sensação de que pode não só vir mais do mesmo (o que seria muito ruim), mas talvez muito mais de coisas ainda piores, o que seria uma tragédia, e me deixa um pouco receoso de que no debate presidenciável de 2018 talvez estejamos discutindo um país em condições econômicas muito piores. Ah, estava esquecendo, ela ainda soltou a pérola de transformar uma carta de renúncia em uma "carta de demissão", poderíamos passar sem essa.

                Luciana Genro, “A maniqueísta”. O discurso maniqueísta da candidata do PSOL não é novidade. É evidente que ela não domina nem os rudimentos de finanças e economia, pois às vezes solta pérolas econômicas como confundir o mercado de renda fixa (o chamado “rentismo”) com o mercado de renda variável (a chamada "especulação").  Porém, essa é a função a que ela se propôs, conscientemente ou não, a dividir o mundo entre “malvados exploradores” e “pobres explorados”. É um discurso fácil de ser feito, pois não precisa se preocupar com coisas “chatas” como: incentivos, inflação, responsabilidade fiscal, balança de pagamentos, spreads, risco Brasil, necessidade de investimento privados, ineficiência estatal, etc, etc. Além de ser fácil, é um discurso que ainda tem bastante aceitação, pois o ser humano gosta de ter claro quem é o bandido e quem é o mocinho, se não fosse assim Hollywood não seria tão famosa com os seus filmes maniqueístas.  Eu não vejo nenhum problema em uma candidata ter essa postura. Vamos discutir  impostos sobre grandes fortunas, a nossa dívida, etc, mas poderia ter sido escolhida uma candidata que dominasse mais alguns conceitos básicos de economia.

                Aécio Neves e a “saia justa”.  Em minha opinião, o candidato Mineiro se saiu razoavelmente bem (não, caro leitor, não tinha pretensão de votar nele antes do debate, e não sei se tenho depois dele). Ele recebeu uma resposta bem dada de Marina para uma pergunta sobre a incoerência de se escolher assessores, quando Marina era Ministra, que tinham sido derrotados em campanhas eleitorais. Fora isso, eu ao menos não vislumbrei nenhuma gafe, a não ser a ridícula troca de “conversa de bar” com o Pastor Everaldo, o que faz levantar suspeita que havia algum acordo prévio antes do debate, o que se aconteceu é lamentável. Entretanto, é visível que, mesmo tentando não se distanciar de FHC (como os outros candidatos do PSDB fizeram nas últimas eleições), fica difícil explicar para o eleitor comum quando a candidata Dilma coloca os números objetivos de cada governo. Eu consigo entender que o Brasil evoluiu, que foram feitas reformas necessárias e impopulares com o FHC (que cometeu diversos equívocos), mas é difícil se livrar da pecha de alto desemprego, arrocho e altos juros. Como falar que os juros hoje no Brasil são altos, se no governo FHC chegaram a inacreditáveis 45% aa? É uma tarefa difícil.  Talvez, assumir o governo agora seja uma vitória de Pirro, pois os próximos anos no Brasil não serão fáceis, e se forem feitas reformas impopulares (mas provavelmente necessárias), o PSDB, e talvez qualquer candidato oposicionista, não terá nenhuma chance em 2018.

                Eduardo Jorge, “O cara Bacana”.  O candidato do PV é comumente taxado como um sujeito que gosta de fumar um baseado, tranqüilo, numa forma de denegrir a imagem do mesmo. Eu acho uma conduta além de desrespeitosa, simplificadora, pois é muito mais fácil denegrir alguém ou alguma ideia, do que ser confrontado com perguntas que atingem o âmago de alguns problemas humanos modernos como: será que o dinheiro dos royalties do petróleo vai entrar por um lado e sair pelo outro com saúde pública (aqui ele está simplesmente chamando atenção para uma externalidade, algo para mim essencial para se entender as dinâmicas do mundo atual), um mundo voltado para o consumo desenfreado está nos fazendo mais felizes, etc. Eu acho que o Eduardo Jorge comete alguns equívocos conceituais quando fala de economia, mas ele traz à baila temas muito interessantes. Além do mais, ele é médico, e parece ser bem envolvido com causas muito bacanas na área de saúde, fazendo com que a pecha de “defensor da maconha” seja realmente algo sem sentido.  Neste debate para mim foi o que melhor se saiu.

Eu iria escrever pobre povo brasileiro, mas não tenho certeza se esse nível intelectual  de ideias não seja o que talvez nós merecemos, já que nas relações cotidianas mais triviais muitos dos defeitos dos nossos nobres candidatos afloram de maneira evidente. Portanto, ao invés digo: pobres crianças do Brasil...

            Grande Abraço a todos!